Às vezes ainda me zango com o meu irmão

Lembro-me de ler numa crónica do António Lobo Antunes que o seu relacionamento com o pai só melhorou depois da sua morte. As palavras podem não ter sido exactamente estas, mas a mensagem era esta, tenho a certeza. Comigo e com o meu irmão passa-se exactamente o contrário. Dei-me sempre muito melhor com o meu irmão quando ele era vivo, do que agora que ele já não está.

Desde que o meu irmão morreu, e já são 12 anos dia 13 do próximo mês, dou-me muito pior com ele e temos até algumas zangas. Demorei muito tempo até conseguir dizer a palavra morreu. Não comparável com o que nos custa a morte de alguém próximo, a morte enquanto palavra é muito dolorosa de ser pronunciada. Talvez porque morte é sinónimo de fim e quando se trata da morte de alguém que gostamos muito, o amor não acaba com a morte, daí que não exista um fim. Será também essa a razão pela qual frequentemente são utilizadas expressões como “está no céu”, “já não está entre nós”. Aquela pessoa continua a existir, pelo menos para nós e no amor que continuamos a sentir, só não está fisicamente próxima de nós. E é exactamente por isso que às vezes me zango com o meu irmão, por ele não estar aqui, fisicamente aqui. Demorei até algum tempo para conseguir perdoá-lo por isso. Nunca achei que a distância melhorasse os relacionamentos, não os de proximidade e intimidade, porque esses, como os próprios nomes indicam, são relacionamentos com base na proximidade e na intimidade. Precisam de pessoas fisicamente próximas, que se toquem entre si e que partilhem a vida que vai acontecendo no dia-a-dia de cada um.

No dia 26 de Dezembro de 2004 o mundo acordou com a triste notícia do sismo e e tsunami no Oceano Índico que roubou a vida a milhares de pessoas. Eu grávida do João Maria, eu e o meu irmão os dois sentados no sofá, incrédulos em frente à televisão, na minha sala, no apartamento onde eu já não moro. Custa-me perdoar-lhe por nunca ter ido a esta casa onde moro agora, onde moramos os 5. Eu, o Pedro e os seus 3 sobrinhos, 2 que não chegou a conhecer. Os dois, eu e ele, os dois no sofá a ver as imagens carregadas da tragédia que acontecia lá tão longe e nós a ver tudo tão de perto no ecrã da minha televisão. Já não usamos essa televisão. Os dois em silêncio e ele a fazer-me festas na barriga grávida de cinco meses. Há dias que ainda consigo sentir essas festas da sua mão com dedos pequenos e as unhas roídas. Espero conseguir senti-las até ao fim dos meus dias, nunca lhe perdoaria se por acaso deixasse de as conseguir sentir.

“Ele está a olhar por ti, por vocês, pelos sobrinhos”, “é uma estrelinha que vos guia” são frases frequentes ditas por quem gosta de mim, mas eu nunca gostei muito de pedir favores ao meu irmão e desde que ele morreu então muito menos. Não o quero incomodar com as minhas coisas. Primeiro porque tenho a certeza que ele tem coisas muito mais interessantes para fazer do que estar a olhar para a vida dos outros, tem a sua, aquela que nós na terra chamamos de eterna (será mesmo? dito assim até parece uma canseira). E segundo porque ele demora sempre muito tempo a responder-me, responde sempre, é verdade, mas demora. “Vês, eu não te disse que ia ficar tudo bem?” “Esses nervos todos eram mesmo necessários? sempre foste muito exagerada”.

E eu que nunca quis ser filha única, e não sou, vejo-me a ter a mãe e o pai só para mim. Vejo-os a serem avós apenas dos meus filhos e eu a ser apenas tia dos sobrinhos dos outros. Tem dias que fica mesmo difícil eu não me zangar.

Também poderão gostar de: Só pode ser muito bom aí chegar. E ficar.

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4 thoughts on “Às vezes ainda me zango com o meu irmão

  1. Antes de mais, parabéns pelo teu novo “cantinho” na net.

    Acho que já te disse várias vezes isto várias vezes, mas não me o canso de dizer…
    Ler as tuas palavras é tão reconfortante e tão “real”, que a maioria das vezes recebemos uma visita da Srª Lágrima.
    Usando o tal “cliché”, acredito que ele esteja lá em cima a olhar por vós…
    Tantos anos passaram desde que ele foi viajar e muitas vezes me lembro do Costinha, aquele “personagem” que conheci cerca de um ano antes (mal sabíamos nós que os nossos pais eram amigos) mas que me marcou profundamente.

    Continua a partilhar os teus pensamentos. Faz bem à alma.
    Um dia ainda agarras nisto tudo e fazes um livro. Podes ter a certeza que serei dos primeiros a comprar.

    Um grande beijinho para ti e um abraço para os homens aí de casa.

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  2. Tão querida Patrícia… que ternura de texto… é verdade que nos zangamos mas também é verdade que crescemos muito e que nos faz olhar para a vida de uma maneira tão diferente! As pessoas que já deves ter tocado… acho que o ideal passa por não nos centrarmos no que sentimos mas no que podemos dar! Gde bj

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    1. Querida Susana! Tão simples e ao mesmo tempo tão difícil não é? Obrigada pelas tuas palavras, beijinhos para todos vocês e até muito em breve! Estamos quase todos juntos outra vez no campo 💙

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