Seguir sem medo

Faz hoje 12 anos que pelas 20:15 recebi a pior notícia da minha vida.

Tínhamos almoçado juntos em casa da mãe. Era o meu penúltimo dia de licença de maternidade. Um dia antes do João Maria fazer 5 meses. Sei o que almoçámos nesse dia, bacalhau de cebolada que a mãe foi buscar à churrasqueira de São Domingos. Falámos sobre a tua mota e há quanto tempo não andavas nela. Saíste a seguir ao almoço para ir beber café com a tua Té e para ires trabalhar. Não voltei a ver-te. Passei a tarde em casa da mãe. Apeteceu-me arrumar e limpar o teu quarto. Aquele que em tempos também foi meu. Dividimos quarto uns meses antes de eu casar. Os pais tinham trocado de casa e na casa nova só havia um quarto para os dois. Era temporário, em breve iríamos sair os dois das asas da mãe e aquele quarto seria para os netos. Para os meus e para os teus filhos.

Eu já tinha saído quando regressaste a casa no final do dia. A mãe diz que ficaste contente quando viste que eu tinha estado a arrumar o teu quarto. Descalçaste os sapatos à porta para não sujar nada,  trocaste de roupa e foste andar de mota. Já não dormiste essa noite no teu quarto limpo e arrumado.  Não sei onde foste nem se chegaste ao teu destino. Não sei se planeavas ir visitar alguém ou se saíste simplesmente para um passeio. Setembro foi muito quente nesse ano, os finais de dia eram longos e pediam passeios. Tu foste e não voltaste.

O meu telefone tocou cerca das 20:15. Era a mãe, a minha e a tua mãe. Lembro-me das palavras exactas que me disse nesse telefonema. Não as vou contar aqui. Assim como também me lembro do telefonema do pai no dia em que nasceste. Eu estava em casa dos teus padrinhos, não havia telemóveis na altura. O pai ligou lá para casa para nos dar a notícia do teu nascimento. Passaram-me o telefone e eu falei com o pai. Tinha 6 anos e 2 meses e pulei de alegria. Tu nasceste e esse foi o melhor presente que eu alguma vez recebi. Há 12 anos atrás, logo após o teu acidente, o meu telemóvel não parava de tocar. As más notícias correm depressa e muitos não queriam acreditar na triste notícia que tinham ouvido. Não podia ser eu a comprovar, deixei de conseguir atender o telemóvel. Não me lembro se chorei nesse dia, não conseguia entender o que se passava à minha volta mas, mesmo assim,  percebi que o mundo, na forma como o conhecia até aí, estava a desabar em cima de mim. Tive a certeza nesse dia que nada na minha vida voltaria a ser igual. E não foi. O resto tu já sabes. Deixei o João Maria em casa com a minha sogra e segui com o Pedro para o hospital. Nessa noite, entre muitos abraços, houve um de um amigo que, enquanto me abraçava de fúria, segredou-me ao ouvido “não acredito que isto te esteja a acontecer a ti, não a ti”. Naquela altura não entendi, mas ele, por já ter passado por algo muito semelhante, sabia exactamente o significado daquelas palavras. Não demorei muito até entender exactamente o que me quis dizer.

Durante muito tempo senti-me perseguida pelo medo e pela certeza que as coisas más não acontecem só aos outros. Medo quando o telefone toca tarde. Medo da sirene das ambulâncias. Medo quando não estou com os meus. Medo quando se despedem de mim. Medo de não saber perder o medo. Percebi da pior forma que as pessoas a quem acontece algo mau, provável ou improvável, não são dotadas de super poderes para aguentarem tudo, nem nasceram preparadas para o que de mau lhes acontece. “Não sei como consegues” ou “no teu lugar eu não aguentava” são comentários dolorosos de ouvir. Sei que é difícil encontrar palavras que confortem uma dor desconfortada mas o silêncio de uma amizade presente pode valer mais que mil palavras.

Após o teu acidente ofereceram-me 2 livros que nunca li: “Porque é que acontecem coisas más às pessoas boas” e “Desatar o nó do luto”. Não li nenhum. Primeiro porque eu não sou uma pessoa boa a quem aconteceu uma coisa má. Depois porque o nó do luto sou eu que decido quando e como o desatar. Tenho os 2 guardados em casa porque foram-me oferecidos com muito carinho e amizade. Mas sou muito egoísta na minha dor e não consigo encontrar conforto nas palavras de outros lutos.

Sigo com a certeza que o único caminho é este que tenho feito. Há 12 anos sem ti. Há 12 anos e quase 5 meses nesta aventura de ser mãe, continuando a ser filha. Há 12 anos sem ti, continuando a ser a tua irmã. Trago comigo a saudade e um sorriso nos lábios que nem sempre chega ao coração.

O medo? Vou deixando ficar para trás na esperança que se perca e deixe de correr atrás de mim.

Também poderá gostar de ler: Sinto falta de te chorar

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6 thoughts on “Seguir sem medo

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