Histórias de Quarentena

E ao dia já não sei a quantas ando dei um murro na mesa. Não foi bem um murro porque não fechei o punho com receio que me magoasse à séria. Mas para evitar dar uma palmada ao Zé Maria abri bem a mão e dei uma grande palmada na mesa redonda de madeira. Resultado: tenho a mão negra e não fiquei a sentir-me melhor por isso. Também lhe dei uma leve palmada no rabo – ai mas como eu detesto fazê-lo – é uma sensação tão desconfortável… que não quero mesmo que se repita.

Por norma sou muito benevolente com os meus filhos e falho muito no que toca a impor regras. Estou sempre a tentar ver o melhor deles e desculpo-lhes muitas vezes o pior. São miúdos muito meigos, amigos, são uma óptima companhia, amigos uns dos outros, felizes e não reclamam de quase nada a não ser de peixe cozido com batatas e de os obrigar a fazer a cama e a apanhar a roupa do chão da casa-de-banho. Não são mesmo de reclamar. Nestes dias todos que estão em casa não andam a lamentar-se pelos cantos. Continuam com a boa disposição que os caracteriza e só isso já é tão bom. Mas não chega. Eles são preguiçosos e falham muitas vezes com os prazos dos trabalhos da escola. Os três. O Zé Maria que tem sido até agora o mais certinho já se juntou ao trio da preguiça. E claro que eu me sinto culpada por isso. Como me zango poucas vezes com eles (eles dizem que me zango muitas mas eu acho que tenho razões para me zangar muitas mais vezes) quando zango viro uma fera, grito, espumo da boca e digo coisas que me arrependo. Desta vez o resultado foi mesmo eu ficar com uma nódoa negra na palma da mão. Da próxima vez vou esmurrar as almofadas do sofá.

Embora há tantos dias em casa, há 2 meses já, com as saídas limitadas ao necessário e alguns desvios (poucos) que me permiti fazer, o tempo continua a passar muito rápido. Comecei estes dias de quarentena mãe de 2 rapazes e de um bebé e um destes dias acordei com um adolescente com voz de homem (sabem o que é de repente ouvirem um homem a falar dentro de casa e esse homem não ser o marido?), um pré e um rapaz de 9 anos que de bebé tem pouco mas que é o que mais precisava destes dias sem fim com a mãe. E que bem que nos tem feito o mimo sem corrida. Especialmente os finais de tarde. Acabar o (tele)trabalho e pff – magia – já estou em casa. Embora esta transformação neles tenha acontecido na minha presença só pode ter sido enquanto eu via Anne (witn an e) e de certeza que em algum momento passou por aqui um realizador que fez correr no ecrã uma frase em letras pequenas – 5 anos depois – porque eu não dei mesmo por acontecer.

Começámos esta semana a fazer reciclagem. Só agora? Sim, agora. Porque não antes? não tenho resposta para isso. Agora que já comecei só sei que não tenho nenhuma desculpa para não o fazer. Crucifiquem-me mas só a paranoia do perfeccionismo com que estou a reciclar já me parece castigo suficiente. Já decidi que não compro mais leguminosas enlatadas e todo o nosso lixo orgânico não processado está a dar início a um processo de compostagem (influências boas da Maria Teresa Azoia) junto à minha horta. Nos primeiros dois dias usei sacos transparentes que deixei à vista no lava louça e fiquei impressionada com a quantidade de lixo que apenas 5 pessoas produziram em 48 horas. Comecei também a guardar as borras do café e as cascas de ovo para adubar a horta. Cada peça de lixo que produzo incomoda-me agora mais do que nunca. Finalmente!

E como já perceberam comecei uma horta. Sentia muita falta de nestes dias ter um objectivo específico. Proteger-me a mim e aos outros já é um óptimo objectivo mas faz-me confusão que ninguém me saiba dizer quando voltamos ao que éramos. Gostava muito que as duas senhoras que nos falam diariamente chegassem um dia ao microfone e gritassem em uníssono: já vos sabemos dizer o dia em que vamos colocar fim a esta mxrda. e vocês apenas têm de ser cumpridores até lá, porque a partir daí vai ser rock and roll exactamente como antes. Mas infelizmente é bem provável que isso não aconteça. Daí que eu tenha agora vários novos objectivos que me ocupam fisicamente e me distraem mentalmente: não deixar as plantas da minha horta morrerem.

Há 2 anos quando a Sofia Pais com P grande nos visitou disse-me que era um desperdício não termos uma horta. Como o Pedro é agricultor eu achei que era tudo o que ele não queria era uma horta no jardim. Há 2 ou 3 semanas uma amiga minha disse-me que tinha pena que a sua varanda não estivesse mais exposta ao sol senão faria uma horta de varanda. E foi aí que me deu mesmo o clique. Vou começar a minha horta. Tenho muita vezes a sensação que há determinadas coisas que temos o dever de viver por nós e pelos outros. Preservar o que temos tirando o melhor proveito das situações que estamos a viver. Também penso nisso em relação ao meu irmão. Quando vou de viagem ou quando vou a um concerto ou quando mergulho num mar de água gelada esse pensamento chega-me com muita frequência – tenho de desfrutar deste momento por mim e por ele. Já alguma vez pensaram nisto?

Tenho agora, mais do que nunca, a certeza que o lugar da casa onde há mais amor é na cozinha. O tempo que lá passamos, a dedicação em cada refeição, as migalhas que sobram no chão. Alimentar os outros é, sobretudo, um acto de amor. Levar sushi aos colegas de trabalho é amor, um bolo de iogurte num prato bonito é amor, panquecas é amor, se forem altas e fofas então é amor e paixão, cuidar de uma horta é amor.

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